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Herdeiros de um Projeto, Órfãos de um Passaporte: os 150 anos da imigração italiana no Brasil

Uma investigação sobre como o Brasil celebra a herança italiana enquanto a Itália restringe o direito à cidadania de seus descendentes, expondo um legado complexo de eugenia, identidade e memória.


O convite para uma viagem de imprensa a Caxias do Sul trazia uma pauta clara: cobrir as comemorações dos 150 anos da imigração italiana no Rio Grande do Sul e o 15º Congresso Internacional de Jornalistas e Profissionais de Turismo da OMPT (Organização Mundial de Jornalismo Turístico). Bastou, no entanto, a primeira palestra para que tudo mudasse. “Onde estão os seus antepassados?”, perguntou o presidente da OMPT, Miguel Ledhesma — uma questão simples, mas que transformou um roteiro turístico em uma jornada pessoal e investigativa. Como única brasileira em um grupo com 33 jornalistas estrangeiros, percebi que estava diante de uma das histórias mais complexas do Brasil contemporâneo: a de um país que se orgulha de ser a maior nação italiana do mundo, mas cujos descendentes agora enfrentam um futuro incerto na busca pelo reconhecimento de uma cidadania que é, ao mesmo tempo, herança e direito.

A pergunta de Ledhesma ecoa através de 150 anos de história porque a chegada massiva dos italianos ao Brasil não foi um movimento espontâneo. Como destacam historiadores, a imigração em massa foi ativamente financiada e promovida pelo Estado brasileiro com um duplo objetivo. O primeiro era econômico: substituir a mão de obra africana recém-liberta da escravidão nas lavouras e ocupar terras devolutas no Sul. O segundo, mais velado e hoje amplamente criticado, fazia parte de um projeto de nação baseado em teorias eugenistas — a política de “branqueamento”, que via no imigrante europeu um agente capaz de “civilizar” e “aprimorar” uma população majoritariamente negra e mestiça.

Esse projeto complexo de país fincou raízes de forma particularmente visível na Serra Gaúcha — e é em Caxias do Sul que os reflexos dessa história se revelam hoje de maneira inesperada. Diferentemente de vizinhas famosas como Gramado ou Bento Gonçalves, cuja economia há décadas gira em torno do turismo, Caxias consolidou-se como a segunda maior cidade do estado e um dos principais polos metalmecânicos do país. Agora, em um movimento estratégico para diversificar sua economia e valorizar seu patrimônio, a cidade industrial volta às próprias origens e aposta no turismo de memória para atrair um novo perfil de visitante: aquele que não busca apenas paisagens, mas também um elo com o passado.

Caxias do Sul é o coração da imigração italiana no Rio Grande do Sul, e sua história pulsa em cada esquina, museu e cantina. Durante a press trip, os jornalistas internacionais, em tom de brincadeira, perguntaram se “os gaúchos não fizeram nada”, já que parecia que “tudo os italianos fizeram”. A piada, longe de diminuir outras contribuições, evidencia o protagonismo dos descendentes de italianos na formação econômica, cultural e social da região. Essa presença marcante se materializa em roteiros de turismo de memória que transformam a trajetória do imigrante em experiências vivas e afetivas, valorizando um legado que atravessa gerações.

O roteiro de Caxias do Sul, cuidadosamente planejado pelos anfitriões locais, foi mais do que uma sequência de visitas turísticas: foi uma imersão na memória viva da imigração italiana. Em cada trajeto — seja nos museus de famílias pioneiras, nas trilhas rurais, nas igrejas centenárias ou nos almoços em cantinas tradicionais — ficava evidente como o passado foi transformado em experiência contemporânea. O turismo de raízes, que a cidade passa a valorizar como estratégia econômica e simbólica, transforma o visitante em parte ativa de uma narrativa coletiva na qual história, memória e identidade se entrelaçam. Assim, cada parada do nosso roteiro deixava de ser apenas uma atração e se revelava como um produto construído ao longo de gerações, carregando afetos, saberes e muitas mãos anônimas.

O grupo iniciou o roteiro no Parque Villa Dei Troni, idealizado por Edson Tomiello, o “Trovão”, considerado o primeiro parque temático dedicado à imigração italiana no Brasil. Localizado em Ana Rech, o espaço preserva construções originais, cenários da antiga colônia e um acervo cultural mantido pela própria comunidade, proporcionando uma verdadeira viagem ao cotidiano dos imigrantes e tropeiros que chegaram à Serra Gaúcha em 1875.

A seguir, o distrito de Criúva nos recebeu com a Trilha da Cachoeira da Mulada, uma experiência intensa em meio à natureza serrana. A visita ao Memorial Irmãos Bertussi e à Casa Histórica Bertussi emocionou o grupo ao celebrar a força da música regional e da família pioneira. Ao cair da noite, a trilha noturna terminava ao redor do fogo, com um jantar preparado por anfitriões locais: arroz mateiro, linguiça artesanal e queijo serrano derretido — tudo em um clima de partilha, histórias e sabores que atravessam gerações.

Se o primeiro dia apresentou as raízes da colonização, o segundo nos mostrou como esse legado se mantém vivo. O dia começou em Galópolis, onde o Instituto Galópolis se dedica à preservação da memória e do patrimônio dos descendentes de italianos. Na vinícola boutique Don Bonifácio, conhecemos o trabalho da família na produção de vinhos que combinam tradição e inovação, reforçando a vitalidade do empreendedorismo local. Uma pausa reverente na Gruta Nossa Senhora de Lourdes permitiu contato com a espiritualidade da região, e o dia foi encerrado na Cervejaria Pavos, exemplo de criatividade e expansão do turismo rural na Serra Gaúcha.

O terceiro dia conduziu o grupo ao bairro São Pelegrino, onde a igreja e os afrescos de Aldo Locatelli são ícones da fé e da arte dos imigrantes, preservados com extremo zelo pela comunidade. A visita aos estádios Alfredo Jaconi e Francisco Stédile materializou a importância do futebol como símbolo da formação cultural da cidade. O almoço na tradicional Galeteria Alvorada, seguido por uma passagem pela Casa de Pedra, pelo Parque de Eventos da Festa da Uva e pelo Monumento ao Imigrante, ampliou o mergulho na memória coletiva de Caxias. O encerramento aconteceu na Cantina Tonet, onde a família anfitriã brindou o grupo com hospitalidade e vinhos que traduzem história e pertencimento.


A virada dessa história começa quando o afeto encontra a burocracia.

Marta Guerra Sfreddo, jornalista ítalo-brasileira de Caxias do Sul, cuja jornada pela cidadania italiana revela os desafios e emoções desse processo. Foto: Bruna Sfreddo Hunoff

Mas se Caxias do Sul celebra suas raízes italianas com orgulho e afeto, para muitos descendentes essa mesma herança se transforma em obstáculo jurídico: é o paradoxo de ser valorizado como patrimônio cultural no Brasil e, ao mesmo tempo, ver o direito formal à cidadania italiana ser progressivamente limitado pelas leis do país de origem.

Nos últimos anos, cerca de 30 milhões de brasileiros descendentes de italianos — mais da metade da população atual da Itália — se viram diante de uma nova barreira. A legislação italiana referente ao reconhecimento da cidadania por descendência (ius sanguinis) passou por mudanças significativas, restringindo o direito conforme se afasta o nível geracional. Até pouco tempo, bisnetos e até trinetos de italianos nascidos fora da Itália podiam solicitar a cidadania mediante comprovação documental. Agora, com as alterações recentes, esse direito se estreita quase exclusivamente a filhos e netos nascidos em território italiano, tornando o processo muito mais burocrático e dificultando o acesso para as gerações posteriores.

A justificativa oficial do governo italiano para a restrição é o controle do volume crescente de pedidos, que sobrecarrega consulados e compromete a eficiência do atendimento. Soma-se a isso o argumento de preservar a “integridade” da nacionalidade italiana — um debate que mistura identidade, pertencimento e políticas migratórias. Para muitos descendentes brasileiros, porém, essa suposta “racionalização” se traduz numa barreira que ignora vínculos históricos e afetivos legítimos, gerando frustração diante do paradoxo: enquanto o Brasil celebra e preserva a herança italiana, a Itália limita o acesso formal à própria cidadania que originou essa história.

Para muitos brasileiros, o sonho da cidadania vai além do passaporte europeu: é uma busca por pertencimento, por validação de uma história familiar que atravessou oceanos e moldou identidades. As novas restrições, porém, atingem em cheio milhares de famílias que preservam costumes, memórias e vínculos culturais, mas agora encaram a negativa jurídica apesar do laço afetivo. Em Caxias do Sul, onde cada rua reconta a saga dos antepassados, esse paradoxo se torna ainda mais evidente: a celebração das raízes italianas convive com a frustração dos descendentes à espera do reconhecimento de uma cidadania que, em essência, deveria ser imprescritível. É nesse contexto que histórias como a de Marta ganham dimensão humana — porque mostram, no cotidiano, o impacto real de uma burocracia que não enxerga o que a memória preserva.

A jornada pela cidadania italiana da jornalista Marta Guerra Sfreddo, de Caxias do Sul, é a materialização desse sentimento. O processo, iniciado em 2013 no Consulado Geral da Itália em Porto Alegre, enfrentou desafios — entre eles, a pandemia, que travou o atendimento e prolongou a espera. Ainda assim, a emoção crescia a cada etapa, reafirmando que o reconhecimento formal não é apenas um procedimento administrativo, mas uma homenagem profunda à história familiar. “Receber a confirmação da cidadania em maio de 2025 foi um momento que ficará para sempre na memória — orgulho, pertencimento e gratidão definem o que sentimos”, relata Marta. Em agosto, já como cidadã italiana, ela reencontrou suas raízes em Florença, estudando a língua e se conectando à saga do bisavô Giovanni Guerra, nascido em Fara Vicentino, Vicenza. “Ser ítalo-brasileira carrega a mesma intensidade do amor por dois países”, afirma. Para Marta, as celebrações dos 150 anos da imigração italiana no Rio Grande do Sul reforçam a legitimidade de histórias transmitidas de geração em geração. Concluir essa trajetória não é apenas realizar um sonho: é honrar um legado e entregá-lo às futuras gerações.

Segundo Gabriel Ezra Mizrahi, especialista em cidadania italiana e fundador do Clube do Passaporte, o momento é de clara colisão entre lei e Constituição. A nova legislação tenta limitar a cidadania por geração, impondo um corte artificial a um direito que, historicamente, sempre foi transmitido de forma ilimitada pelo sangue. Já o Tribunal Constitucional afirma que a cidadania iure sanguinis é um direito natural, que não depende do número de gerações nem do local de nascimento. “Na prática, para quem inicia um processo agora, a decisão do Tribunal tem maior peso jurídico, porque interpreta a Constituição e orienta todo o sistema. A lei ordinária pode regular o procedimento, mas não esvaziar um direito fundamental”, explica. Esse embate, admite ele, trouxe uma instabilidade inédita: “Há cinco anos, o maior problema era burocrático; hoje, é também político.”

A decisão da Corte, por outro lado, abriu caminho para contestar negativas baseadas apenas na limitação de gerações e fortaleceu a atuação de quem recorre ao Judiciário. Mas esse acesso tem preço. “A restrição não é só jurídica, é social e financeira”, afirma Gabriel, lembrando que um processo judicial pode custar cerca de 600 euros por pessoa da família, além de exigir profissionais altamente especializados. “Como é difícil restringir diretamente um direito constitucional, o governo passou a criar obstáculos indiretos: custos mais altos, caminhos mais complexos e maior dependência dos tribunais.” O impacto, reforça, é emocional: muitos descendentes que buscavam a cidadania como forma de reconectar a própria história agora se veem excluídos desse caminho. Ainda assim, a demanda cresce e tende a aumentar à medida que surgem decisões favoráveis — o que pressiona o sistema judicial e alonga o tempo médio dos processos.

Para o especialista, isso torna ainda mais evidente a contradição entre o Brasil que celebra e a Itália que restringe. “De um lado, temos museus, rotas de memória e eventos que exaltam a imigração italiana como parte da identidade brasileira; de outro, uma legislação cada vez mais fechada para reconhecer formalmente esses laços”, resume. Na avaliação de Gabriel, a cidadania hoje se apoia em três motivações principais — mobilidade, segurança de planejamento de vida e pertencimento — e nenhuma delas é apenas pragmática. “A cidadania deixou de ser só um passaporte: tornou-se um processo identitário e emocional. A esperança é que a lei, em algum momento, acompanhe essa dimensão humana que está sendo celebrada nos 150 anos da imigração italiana”, conclui.

Para especialista, a cidadania italiana é um direito natural, protegido pela Constituição, e não pode ser limitada artificialmente por gerações. Foto: Pixabay

A outra capital da italianidade no Brasil: São Paulo

A história da imigração e dos desafios na conquista da cidadania italiana não está restrita à Serra Gaúcha. São Paulo, que abriga a maior comunidade ítalo-descendente fora da Itália, é palco de uma realidade muito parecida. Para entender a amplitude do fenômeno, é essencial conhecer os números e como essa população mantém viva a herança cultural.

Estima-se que o Brasil tenha cerca de 30 milhões de descendentes de italianos, dos quais mais da metade vive no estado de São Paulo. Historicamente, entre 1870 e 1920, o estado recebeu a maior parte dos imigrantes italianos que desembarcaram no país, atraídos primeiro pelo trabalho nas lavouras de café e, depois, pelo crescimento acelerado da indústria urbana. Bairros como Bixiga, Mooca e Brás seguem como símbolos vivos dessa presença, com gastronomia, festas tradicionais e um cotidiano moldado pela cultura ítalo-paulistana. Não por acaso, uma brincadeira popular circula entre os paulistanos: “Sabe como reconhecer um descendente de italiano em São Paulo? Não precisa nem perguntar, ele vai falar.” Essa espontaneidade traduz a forma como a identidade italiana segue pulsando na cidade.

No entanto, assim como em Caxias do Sul, a nova legislação italiana também gera apreensão em São Paulo, onde muitos descendentes seguem buscando a cidadania como forma de reafirmar os vínculos com a terra dos antepassados. Esse movimento evidencia a complexidade de pertencer a duas culturas — e a um país que, mesmo distante geograficamente, continua exercendo enorme influência na construção da identidade de milhões de brasileiros.

No encerramento do congresso, Miguel Ledhesma retomou — e respondeu — à própria pergunta que abriu esta jornada: “Os antepassados não estão apenas nos documentos ou nos monumentos, mas dentro de cada um de nós”. A frase sintetiza a complexa trajetória da identidade ítalo-brasileira, marcada por histórias de resistência, memória afetiva e pela busca persistente por reconhecimento.

Caxias do Sul, São Paulo e tantas outras cidades brasileiras carregam no cotidiano as marcas desse legado multifacetado, que não se resume a um passaporte ou a uma certidão. É uma herança viva, que pulsa nas festas, nas tradições, nas famílias e na busca contínua por pertencimento.

Enquanto a Itália debate leis que limitam o acesso à cidadania, o Brasil celebra um passado complexo, porém vibrante, lembrando que, para milhões de brasileiros, ser descendente de italianos é mais que um direito — é uma identidade que ultrapassa qualquer papel. E talvez aí esteja a resposta definitiva para a pergunta: onde estão os seus antepassados? Eles estão, sobretudo, dentro de cada um que escolhe manter essas raízes vivas, construindo o futuro a partir do passado.